A fase que o Brasil atravessa hoje, quando historiadores se debruçarem sobre ela, caso ainda existam, certamente será lembrada como a era da alucinação passiva. É como um estado psicótico coletivo, onde vemos o que não está lá e acreditamos no que nunca existiu. Nesse transe, a narrativa de que o Supremo Tribunal Federal (STF) é o bastião da democracia brasileira reina absoluta. Contudo, esta narrativa, à primeira vista heroica, é apenas um delírio emoldurado por outro: a ideia de que ainda existe uma democracia plena a ser protegida no Brasil.
A realidade é crua e inescapável: os pilares democráticos foram sendo corroídos ao longo dos anos e, hoje, o que nos resta é uma estrutura cada vez mais capenga. Ironia das ironias, o STF, que deveria ser o guardião dessa democracia, não apenas assiste à sua ruína, mas a acelera, decisão após decisão, discurso após discurso. Não se trata de um tribunal de justiça no sentido pleno da palavra. É, sobretudo, um órgão supremo — supremo em poder, supremo em influência e supremo em sua disposição de governar sem votos.
O mais intrigante nesse cenário é a aceitação passiva de que o STF, no fundo, é bem-intencionado, mas “exagera” no zelo ao cumprir sua função constitucional. Essa é a falsificação mais ousada dessa narrativa. Não há exagero. Não há equívoco. O Supremo opera com uma clareza assustadora: ele se considera o único ente capaz de governar o Brasil. Para isso, usa o manto da democracia como escudo, enquanto desfere golpes certeiros contra o sistema democrático.
As evidências estão por toda parte. O presidente do STF decide sobre o uso de câmeras por policiais, uma prerrogativa claramente administrativa. Um ministro se aventura a opinar sobre o preço de covas em cemitérios. O tribunal define quantidades de maconha que cabem no bolso de um cidadão ou decide que batons podem ser armas letais. Esses não são lapsos ou “pequenos excessos”. São decisões deliberadas para consolidar o tribunal como o verdadeiro centro do poder.
A lógica por trás disso é simples: governar sem enfrentar as urnas. Não há campanhas eleitorais, promessas a cumprir ou cobranças populares. O Supremo cria maiorias entre seus próprios membros para legitimar seu controle e, como uma monarquia togada, decreta que tudo isso é necessário para “salvar a democracia”.
Enquanto isso, Executivo e Legislativo tornam-se figurantes de luxo, preocupados em saquear o orçamento e manter seus privilégios, mas incapazes de desafiar o STF. É uma farsa bem-orquestrada, em que quem manda, de fato, são os ministros do tribunal.
Estamos vivendo o auge de um poder centralizado e incontestável, enquanto a democracia se torna uma sombra de si mesma. E o mais trágico? Aceitamos tudo isso como se fosse o único caminho possível. Resta saber por quanto tempo ainda chamaremos isso de democracia antes de admitirmos que o que temos é apenas um espetáculo de alucinações institucionais.