A história recente do Brasil tem se mostrado uma vitrine de contradições. Uma das mais gritantes é a postura de certos personagens históricos que, após se beneficiarem da anistia política, hoje se posicionam contra esse mesmo direito para outros. O caso mais emblemático é o do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que foi anistiado pelo regime militar em 1979 e recebe, até hoje, mais de R$ 10 mil por mês como beneficiário dessa medida.
Lula não está sozinho. A ex-presidente Dilma Rousseff, cujo passado inclui a participação ativa em organizações armadas como o VAR-Palmares, também figura entre os anistiados. Dilma participou de ações como assaltos a quartéis e sequestros — incluindo o do embaixador americano Charles Elbrick. Por esses crimes, cumpriu seis anos e um mês de prisão. Em contraste, manifestantes do 8 de janeiro de 2023, muitos dos quais sequer armados, enfrentam sentenças que chegam a 17 anos de reclusão.
Há algo profundamente perturbador nessa assimetria. O Brasil, ao conceder anistia ampla e irrestrita em 1979, optou por virar a página do conflito entre a ditadura e os grupos de esquerda armada. Foi uma escolha difícil, mas necessária para a redemocratização. Porém, o que vemos hoje é uma tentativa cínica de reescrever os critérios da própria anistia: ela serviu quando era para eles, mas é inaceitável quando se trata de seus adversários políticos.
O caso de José Dirceu é outro retrato dessa hipocrisia. Libertado em troca do embaixador sequestrado, foi enviado a Cuba, treinado em guerrilha e retornou clandestinamente ao Brasil com nome falso. Viveu como outro homem, casou-se, teve filhos — sem que sua própria esposa soubesse sua verdadeira identidade. Um agente duplo. Um “anistiado” que se reinventou no sistema, e que hoje posa como paladino da moral pública.
É irônico e, de certa forma, trágico, ver esses mesmos personagens hoje se manifestarem com veemência contra qualquer proposta de anistia aos envolvidos no 8 de janeiro. São os anistiados que se recusam a anistiar. A incoerência é ainda mais gritante quando se analisam os detalhes da invasão às sedes dos Três Poderes: portas abertas, ausência de resistência inicial, sinais de possível conivência. Até o próprio Lula, em entrevista, deixou escapar sua perplexidade com a facilidade com que os manifestantes entraram no Palácio do Planalto.
A pergunta que fica é simples: se a anistia foi válida para quem lutou, muitas vezes com armas nas mãos, contra um regime autoritário, por que ela não pode ser considerada ao menos debatida para quem protestou — ainda que de forma ilegal — contra um governo democrático? A justiça não deveria ser medida por afinidade ideológica, mas por princípios éticos e jurídicos.
Lula e seus companheiros, ao se beneficiarem da anistia, aceitaram um pacto nacional de reconciliação. Agora, ao negarem o mesmo direito a outros, revelam que esse pacto sempre foi, para eles, um instrumento de conveniência. Não um valor.
A verdadeira democracia se sustenta na coerência e no respeito ao devido processo legal — não no revanchismo seletivo. A história cobra caro de quem finge esquecer o caminho que trilhou para chegar ao poder.