Há histórias nas Escrituras que, por mais conhecidas que sejam, continuam nos desafiando com perguntas que não têm respostas fáceis. A história de Abraão e Isaque, em Gênesis 22, é uma dessas. Um episódio que parece nos colocar diante de um paradoxo: como pode o Deus da vida, que repudia sacrifícios humanos, pedir justamente isso ao pai da fé?
O texto começa com uma introdução que já nos prepara: “Depois destas coisas, pôs Deus Abraão à prova…” (Gn 22:1). É importante lembrar disso desde o início: não se trata de um pedido sádico ou cruel, mas de uma prova divina com um propósito muito maior do que Abraão poderia imaginar.
O silêncio que grita
O mais intrigante é que Abraão não questiona. Ele não debate com Deus como fez em Sodoma (Gn 18). Não há registro de um lamento, nem mesmo de uma oração. Mas será que um pai que esperou cem anos por um filho não sentiu nada? Será que seu coração não sangrou ao ouvir de Deus: “Toma agora o teu filho, o teu único filho, Isaque, a quem amas…” (Gn 22:2)?
É difícil acreditar que não. Há silêncios que falam mais do que palavras. E talvez esse seja um dos maiores testemunhos da fé de Abraão: a obediência silenciosa diante de uma ordem aparentemente incoerente com tudo o que Deus já havia prometido.
Charles Spurgeon, o Príncipe dos Pregadores, refletindo sobre esse episódio, escreveu:
“Abraão levantou o cutelo, mas Deus viu antes disso o sacrifício feito no coração. O Senhor não queria o sangue de Isaque, queria a entrega total do coração de Abraão.”
(Spurgeon, Morning and Evening, 1885)
Entre a cultura dos homens e o caráter de Deus
Na cultura dos povos vizinhos, sacrifícios humanos eram comuns. Crianças eram oferecidas vivas em altares de fogo, especialmente em cultos a deuses como Moloque. O próprio Deus condena severamente essa prática: “Não darás nenhum dos teus filhos para fazer passar pelo fogo a Moloque…” (Lv 18:21). Então, por que agora Ele pede algo tão parecido?
O teólogo John Stott nos ajuda a entender:
“O sacrifício de Isaque foi interrompido, porque era apenas um prenúncio. Deus não desejava a morte do filho de Abraão, mas estava apontando para o dia em que Ele mesmo ofereceria seu próprio Filho, sem substituto.”
(Stott, A Cruz de Cristo, 1986)
Ou seja, o que parece ser um pedido estranho é, na verdade, uma lição profunda. Deus não deseja sacrifícios humanos, mas queria que a fé de Abraão prefigurasse o maior ato de amor da história: o sacrifício de Jesus na cruz.
“Deus proverá para si o cordeiro”
O diálogo entre pai e filho é um dos momentos mais tocantes de toda a narrativa. Isaque, carregando a lenha — imagem que remete à cruz — pergunta: “Meu pai… onde está o cordeiro para o holocausto?” (Gn 22:7). E Abraão responde com fé profética: “Deus proverá para si o cordeiro”.
E Ele proveu. Naquele momento, um carneiro apareceu, preso pelos chifres. Mas séculos depois, Deus proveria o verdadeiro Cordeiro, o que tira o pecado do mundo (Jo 1:29). Cristo, o Filho amado, foi até o fim. Ali, no Calvário, não houve substituição. O Pai não reteve o Filho, como reteve Isaque. Como diz o apóstolo Paulo: “Aquele que nem mesmo a seu próprio Filho poupou…” (Rm 8:32).
O monte da obediência é também o monte da provisão
Moriá, onde Abraão subiu com o coração apertado e as mãos trêmulas, se tornaria símbolo da provisão divina. O próprio Abraão disse: “No monte do Senhor se proverá” (Gn 22:14). E ali está uma das grandes lições: quando obedecemos mesmo sem entender, experimentamos o caráter fiel e provisório de Deus.
Tim Keller, renomado pastor e teólogo contemporâneo, escreveu:
“No Monte Moriá, Deus mostrou que nunca pediria mais do que Ele mesmo estaria disposto a dar. Em Jesus, Ele não poupou o seu próprio Filho, porque ali, de uma vez por todas, o substituto perfeito foi oferecido.”
(Keller, A Fé na Era do Ceticismo, 2008)
Conclusão: quando a fé fala mais alto que o medo
A fé de Abraão não negava a dor, mas superava a lógica. Ele acreditava que, mesmo que Isaque morresse, Deus o ressuscitaria (Hb 11:17-19). Essa fé é a mesma que precisamos cultivar: uma fé que confia mesmo sem entender, que obedece mesmo sem ver.
Esse episódio nos desafia a olhar para as nossas próprias entregas. O que Deus tem pedido de nós? Há coisas que talvez sejam difíceis de abrir mão. Mas se o Senhor for o nosso tudo, então podemos confiar que, no final da prova, Ele proverá. Sempre.
E mais do que isso: podemos olhar para a cruz e ver que o Deus que pede entrega é o mesmo que entrega. Ele não exige o que não fez. Ele entregou Jesus — o Filho da promessa eterna — para que nenhum de nós precise morrer, mas tenha vida plena e eterna.
Pastor Luciano Gomes, teólogo