O Brasil atravessa um dos períodos mais escandalosos da sua história institucional recente, e a ironia cruel é que tudo isso ocorre sob o pretexto de se defender… a democracia. Pois é: quanto mais se grita em nome da “ordem constitucional”, mais se atropela a própria Constituição. No centro dessa farsa está um Supremo Tribunal Federal que deixou de ser tribunal há muito tempo. Hoje, tornou-se uma cúpula política, movida por vaidades pessoais, alianças com o Executivo e uma missão quase messiânica de reeducar os brasileiros — nem que seja à força.
Não há mais espaço para dúvidas: o STF deixou de ser o guardião das leis e virou o fabricante das suas próprias. Assume inquéritos, acusa, julga e sentencia. Um verdadeiro poder absolutista, só que travestido de toga e cercado por manchetes elogiosas. Ninguém mais pergunta onde estão os limites — porque, simplesmente, não existem. Os ministros não precisam responder por nada, nem pelas aberrações jurídicas que produzem em série, nem pelas vidas que destroem com suas interpretações “criativas” da lei.
A obsessão atual é o tal “golpe de Estado” de 8 de janeiro. Mas o que houve de fato? Um quebra-quebra patético, sim, criminoso, claro, mas longe de qualquer tentativa organizada de derrubar o governo. Nada de tanques nas ruas, generais em reunião, rádios ocupadas ou quartéis em prontidão. Só uma massa desorganizada, incentivada por discursos inflamados e alimentada por frustrações. Transformaram isso num 11 de Setembro tupiniquim. E para sustentar essa narrativa, criaram-se monstros judiciais: réus sem direito à defesa plena, penas desproporcionais, testemunhos frágeis e uma justiça de exceção operando a todo vapor.

O que se viu foi um sistema inteiro mobilizado para esmagar adversários. Mas justiça seletiva é vingança, não justiça. E é aí que mora o perigo: quando o Estado passa a punir mais pelo que você pensa do que pelo que você fez, o país entra na era do autoritarismo com discurso democrático. E não é à toa que Alexandre de Moraes se transformou no símbolo dessa nova era: implacável com os opositores, tolerante com os aliados e sempre pronto a ensinar à população o que é certo — mesmo que isso signifique reescrever os fatos.
Enquanto isso, os verdadeiros problemas do Brasil seguem de lado. Saúde pública em colapso, educação em ruínas, segurança inexistente. Mas o STF não está preocupado com isso. Sua prioridade é “combater a desinformação”, “proteger as instituições” e “garantir a paz social”. Na prática, significa: perseguir perfis de rede social, censurar opiniões divergentes e manter o monopólio da verdade sob sua tutela.
A tragédia não está apenas na injustiça. Está no silêncio conivente de parte da sociedade, na cumplicidade da imprensa domesticada, na apatia de parlamentares que se curvam diante de ministros que nunca receberam um voto. E está, sobretudo, no medo. Sim, medo. Hoje, no Brasil, muitos têm medo de opinar. Medo de ser investigado, de ser preso, de ter seus bens bloqueados por um post, um áudio ou uma piada fora do “tom democrático”.
Em nome do combate ao autoritarismo, criou-se um autoritarismo novo. Mais sofisticado, mais midiático, mais disfarçado de legalidade. Mas ainda assim autoritário. Porque, no fundo, a democracia brasileira virou uma peça de teatro: tem cenário, tem roteiro e tem seus atores principais. O problema é que o público está começando a perceber que tudo isso é uma encenação — e que o espetáculo está ruindo.